segunda-feira, 23 de maio de 2011

No caderno que vinha na mala...

Delinear veios de tinta que arrancam conceitos ao papel. Apresenta-se agora como peneira, um utensílio que talvez permita dizer-me a mim mesmo o que vi ou o que senti. No frenesim da amálgama de projecções, sensações, expectativas, talvez este seja o método que crave o que pensa o meu cérebro do que os meus olhos vêem.
E chegámos ao Cairo. Nada esperar é uma virtude. Tal como os olhos de uma criança se rasgam de encanto ao inesperado, pois ele não é mais que a pureza que caminha, também os meus deveriam, por justiça ao que vejo, olhá-lo sem preconceitos, sem histórias passadas.

Mas o Ser Humano já espera qualquer coisa e, consequentemente, ora se encanta, ora se desilude. Ao olhar o Cairo desiludiu-se a criança e surpreendeu-se o adulto que me habitam. Como os livros de história de quando era miúdo me faziam acreditar, a cidade do Cairo (já) não era, formalmente, o perpetuar do que foi outrora a glória faraónica; não correspondia à imagem que me prensaram de uma massa de terra que emerge do chão e compõe a cidade através de uma estrutura que transmite, dentro da "eléctrica" actividade que lhe seria inevitável, a paz de existir dentro dela. É, antes, dentro de um planeamento outrora feito, um brotar de betão e tijolo que vai escolhendo autonomamente a sua forma e lugar de existir e que, apesar de pontualmente se saber relacionar com a vida que o pisa e rodeia, mantém essencialmente a sua coerência na cor desgastada pelo tempo, unificada pela poluição que "pinta" as paredes da cidade.

Mas ainda bem que os adultos também se enganam. Isso trouxe a surpresa de experiênciar a positiva ferocidade em que uma civilização pode existir. Se, por um lado, o materialismo da cidade a possa mascarar de morta e deixada ao acaso, por outro a vida que a preenche ressuscita qualquer esquina sem sentido ou prédio abandonado. Pisar uma qualuqer rua desta cidade a quase qualquer hora do dia é algo para o qual o "ocidental amestrado pelo passeio" requer alguma habituação. Há todo um modo de funcionamento no Ser muçulmano que o faz exalar energia constantemente, o que torna uma civilização de seres islâmicos algo de verdadeiramente único e arrebatador. A troca, a venda, o biscate, acontecem à frequência necessária a um quotidiano que fervilha em cheiros, cores, buzinas... o trânsito de carros e pessoas é um só, um organismo próprio, e todos vivem também deste lado do globo.

Aqui se surpreendeu o adulto, ao perceber que uma amálgama aparentemente caótica funciona com a sincronicidade de um relógio, um organismo extremamente complexo e fluído. Entretanto, um sol intemporal põe-se no Cairo quente, alinhado com as pirâmides mortas, desalinhado com esta cidade viva...


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